First light
English version, scroll down
As pinturas da série "Vision
With a Shift" nasceram num dia em que me levantei de madrugada para
assistir àquela mudança de luz que acontece nos primeiros instantes em que o
sol rompe no horizonte e consequentemente muda tudo o que é visível.
Aconteceu mais ou menos assim:
Um dia ao acordar, a “coisa” surgiu
no momento em que abri os olhos, incorpórea, como se fizesse parte da luz
coada, um fantasma feito de partículas douradas a ganhar vida através dos
feixes de luz intrusos. Afinal não é um fantasma, é apenas uma vontade de estar
num certo sítio numa certa hora para presenciar o nascer do sol - É ali que vou
encontrar aquela luz que procuro para as tais pinturas que estão no atelier há
semanas ainda por resolver, sobre as quais começo a duvidar se serei alguma vez
capaz de resolver. Esta ideia que veio com o despertar, é uma intuição, um
estratagema de desbloqueio para o trabalho que se arrasta sem solução à vista.
Também é uma forma de controlar a avalanche das ideias em reboliço - Não podes
querer ter todas as ideias ao mesmo tempo, isso seria o caos, uma cacofonia sem
significado, por isso existe a muralha de contenção na forma de um bloqueio
mental que liberta as coisas com a precisão necessária, uma ideia atrás da
outra, à medida que vão sendo úteis. Essas ideias são a substância do que faço
todos os dias, filtrando o monstro interno, turbulento e caótico,
transformando-o numa disposição voluntariosa que me faz levantar da cama todos
os dias, com a maior das vontades de fazer coisas satisfatórias.
Apresso-me, primeiro um pequeno
almoço relâmpago, montes de roupa no corpo, porque hoje está frio. Apanhar a
mochila que está mais ou menos preparada, com cadernos, máquina fotográfica,
uma toalha, a garrafa de água e os bastões de caminhada. O aliciante desta
expedição é que a casa do Baltazar fica muito próxima do sítio que eu tenho
referenciado com o X para apanhar o astro rei a surgir por cima dos penhascos.
Provavelmente nesse preciso instante, o Baltazar vai estar a cumprir o ritual
de sair pela porta fora a correr nu, para mergulhar no tanque de água gelada, o
conceito dele de um banho refrescante pela manhã, por isso está rijo aos
setenta e cinco.
A aurora avança magnificente do lado
nascente. É nesta altura de mudança, quando a escuridão é empurrada para o
outro lado da terra, enquanto se estreita o intervalo entre a noite e o dia,
que o planeta parece suspenso numa perplexidade ansiosa. A antecipação das
próximas horas é feita de silêncio, pleno de possibilidades, tudo pode
acontecer, o mundo pode continuar tal e qual estava ontem, seguindo o seu
caminho sem revoluções, rolando nas suas rotinas e ciclos, com as suas cidades
a acordar para mais do mesmo, com um ou outro sobressalto aqui ou ali na sua
vastidão, na habitual cadência que não vai mudar grande coisa na vida de todos,
pelo menos na vida da maioria. Isso é o que se espera de mais um dia , mas quem
sabe se não será hoje que acontece aquele detalhe da história que poderá mudar
o rumo dos acontecimentos, o pormenor que antecede uma cadeia imparável capaz
de mudar tudo para sempre, como naquele instante em que o Neandertal olhou de
frente o recém nascido Homo Sapiens, o seu elegante e moderno sucessor, o herdeiro
letal da velha linhagem evolutiva.
Estou a avançar pelo meio de um
nevoeiro que gela os campos com o seu enlace leitoso. Acelero o passo, talvez
isso ajude com o frio. Quando alcanço a crista do monte, perto do sítio
onde me irei instalar, a aurora já avançou e o céu começa a irradiar uma
luminosidade cristalina. O nevoeiro dissipa-se nas zonas mais altas e só ficam
uns farrapos no fundo dos vales. Lá está, a casa do Baltazar num horizonte
distante, imagino que ele esteja prestes a sair pela porta fora em direcção ao
seu mergulho matinal. Mais tarde irei visitá-lo e poderemos continuar a
conversa sobre as nossas rotinas e interesses, ou então abordar temas mais
sérios e aí ele irá filosofar sobre o rumo do progresso. A ideia do confronto
do Neandertal versus Homo Sapiens é fruto da imaginação dele, a propósito da IA
- Não se sabe o que aí vem - Disse - O que sabemos é que nada será como dantes.
O Baltazar é um activista militante das causas do planeta, da sustentabilidade
e da luta contra as alterações climáticas - Afirma que por respeito e
consideração com as próximas gerações quer fazer parte da solução, fá-lo de
forma activa nos intervalos do tempo que dedica às sua quinta, aos animais e às
árvores.
Encontrei o sítio para assistir ao
nascer do sol, uma zona plana resguardada a poente por uma rocha calcária que
vai clarendo. A área está exposta à luz e ao calor e pela experiência das
minhas visitas anteriores, sei que a rocha vai aquecer rapidamente e em breve
vou ter que despir roupa mas entretanto dedico-me a contemplar. Espero que na
próxima meia hora possa acompanhar o teatro da mudança, foi para isso que
suportei o desconforto do frio desta madrugada de inverno. Foi o António que me
falou neste sítio - O melhor da região para assistir ao nascer do sol - O
António não vive cá permanentemente, porque os filhos e os netos vivem em
Lisboa, mas tal como eu, é um visitante assíduo, além disso é um contemplador
dos fenómenos da natureza, hoje em dia viaja só para assistir a um eclipse, ou
para deambular por uma qualquer floresta pré-histórica. Hoje está reformado mas
passou grande parte da sua vida a reparar electrodomésticos. Um dia destes a
minha máquina de lavar roupa avariou e foi ele que a reparou, ofereceu-se
diligentemente assim que lhe falei no assunto. Ele não queria nada pelo serviço
mas a minha insistência convenceu-o a receber um pagamento simbólico, pelo
valor de um almoço, só para me calar, suponho. Nesse dia ficámos algum tempo a
conversar sobre assuntos locais. Quem tem comprado as casas que estão à venda.
O que está a mudar para melhor e o que não tem remédio. O assunto que mais o
interessa é o bosque dele, uma mancha florestal com cinco hectares. Um tema de
interesse mútuo porque eu também tenho um bosque que não está tão bom como o
dele mas que eu quero melhorar, por isso estou atento ao que ele diz. O dele é
maior e tem mais variedade de árvores, também é mais acessível porque o António
abriu um caminho muito funcional através do manto de arbustos e criou uma área
de estadia, onde instalou um banquinho feito de tábuas toscas de madeira. Diz
que passa lá muito tempo a ouvir a passarada a chilrear - O que mais gosto é de
se deitar na erva e ficar a olhar para cima a ver o movimento das copas das
árvores - Isso diz muito acerca do António. Também o seu rosto diz muito acerca
dele, tal como a sua expressão tranquila, que parece estar sempre a
apaziguar-nos de um desconforto de alma - Cultivar os bons momentos é como
cultivar um campo, é preciso dedicação e paciência, respeitar a cadência e seguir
o manual das boas atitudes e das boas práticas - afirmou numa das nossas
conversas. A minha ideia acerca da personalidade do António não resulta sómente
do que ele diz acerca de si próprio, mas sobretudo do que ele não diz mas que
transmite no hiato das suas frases curtas, da expressão que acompanha as suas
descrições, pequenos nadas na contabilidade dos acontecimentos de uma vida. O
António tem uma compleição grande, cabeça grande, pés e mãos grandes, corpo
lento nos movimentos, uma impassibilidade natural, como se fosse imune às
asperezas do mundo. Os seus gestos são moldados de eficácia enquanto fala, o
rosto largo foca-nos de frente, olhos nos olhos, queixo erguido de
imperador romano, nariz aquilino, discreta evidência de um meio sorriso nos lábios
pequenos, tudo isso faz parte do enigma da sua linguagem, daquilo que comunica
por silêncios e que nos ajuda a materializar mentalmente o avatar daquilo que
ele é.
O António e o Baltazar são amigos de
longa data. Nas minhas voltas pelas redondezas, uma vez por outra, encontro-os
aos dois , ambos sentados nuns cepos de madeira a desfiar conversas lentas.
Encontrá-los por aqui, no meio dos campos dá-me alegria. Ambos com mais uma
década de vida que eu, vejo-os como agentes de serenidade, pessoas com disponibilidade
e tempo para os outros, construtores de pequenas histórias com quem se pode
passar bons momentos. Invejo-os por estarem nesse patamar, por já terem
silenciado os ruídos intrusos da sua vida anterior, por sentirem satisfação com
aquilo que fazem e pelo alcance das suas ideias simples.
Rabisquei seis páginas do meu caderno de esboços. À medida que o sol vai subindo, o terreno à minha volta vai ganhando nuances de cor que têm a ver com o movimento da luz. As formas, parecem também mudar com a deslocação das sombras e por isso os motivos vão também mudando de aparência, o que me leva a executar os desenhos de uma só vez, sem levantar os olhos do papel, recorrendo à memória fugaz de um olhar rápido. O objectivo não é o rigor, é o processo de memorizar. Nunca irei retratar com rigor aquilo a que assisti hoje, a informação captada irá misturar-se com a de outros dias e formar um modelo que em qualquer altura pode renascer como solução de um impasse criativo, poderá ser a sugestão de uma encosta soalheira, um vale, uma formação curiosa de pedras, como partes de um todo que nunca se irá revelar, as nuances que fazem parte de recriar a minha própria maneira de ver.
English version
The paintings in the
"Vision With a Shift" series were born in a day I went out at dawn to
watch the change of light when the sun rises and consequently changes
everything that is visible. It happened more or less like this:
One day when I woke up and the
“thing” appeared the moment I opened my eyes, incorporeal, as if it were part
of the filtered light, a ghost made of golden particles coming to life through
the intruding beams of light. After all, it's not a ghost, it's just a desire
to be in a certain place at a certain time to witness the sunrise - It's there
that I'll find that light that I'm looking for for those paintings that have
been in the studio for weeks without solution, about which I begin to doubt
whether I will be able to solve them. This idea, born with my awakening, is an
intuition, an unblocking scheme for those paintings with no solution in sight.
It is also a way of controlling the avalanche of swirling ideas - You cannot
want to have all the ideas at the same time, that would be chaos, a meaningless
cacophony - that is why there is this wall of containment in the form of a
mental block that frees things with the necessary precision, one idea after
another. These ideas are the substance of what I do every day, filtering the
inner, turbulent and chaotic monster, transforming it into a willful
disposition that makes me get out of bed every day, with the greatest desire to
do satisfying things.
I hurry, first have a quick
breakfast, lots of clothes on my body, because today is cold. Take the backpack
that is more or less prepared, with notebooks, camera, a towel, bottle of water
and hiking poles. The attraction of this expedition is that Baltazar's house is
very close to the place I have referenced with the X to catch the star king
emerging over the cliffs. Probably at this very moment, Baltazar will be
carrying out the ritual of running out the door naked, to dive into the tank of
ice water, his concept of a refreshing bath in the morning, I believe this is
the reason why he remains healthy at seventy-five.
The dawn advances
magnificently from the east. It is in this moment of change, when darkness is
pushed to the other side of the earth and the gap between night and day
narrows, that seems the entire planet is suspended in anxious perplexity. The
anticipation of the next few hours is a silence full of possibilities, anything
can happen, the world can continue as it was yesterday, following its path
without revolutions, going through its routines and cycles, with its cities
waking up to more of the same, with one or another jolt here or there in its
vastness, in the usual cadence that won't change much in everyone's lives, at
least in the lives of the majority. That's what we expect, but who knows? Maybe
it's today that a detail of history happens, the one that could change the
course of events forever, the detail that precedes an unstoppable chain of
events capable of changing everything for good, like the one in which the
Neanderthal looked head-on at the newborn Homo Sapiens, his elegant and modern
successor, the lethal heir of the old evolutionary lineage.
I am advancing through a fog
that freezes the fields with its milky coating. I quicken my pace, maybe that
will help with the cold. When I reach the crest of the hill, close to where I
will settle, the light has already advanced a little more and the sky above the
horizon begins to radiate a crystalline luminosity. The fog dissipates in the
higher areas and only a few patches remain at the bottom of the valleys. There
it is, Baltazar's house on a more distant horizon, I imagine he's about to head
out the door for his morning swim. Later I will visit him and we can continue
the conversation about our routines and interests, or we can address more
serious topics and then he will philosophize about the direction of progress.
The idea of the confrontation between Neanderthal and Homo Sapiens is the result of
his imagination, in relation to AI - We don't know what's coming - He said -
What we know is that nothing will be the same as before. Baltazar is a militant
activist for the causes of the planet, sustainability and the fight against
climate change - He states that out of respect and consideration for the next
generations he wants to be part of the solution, he is doing it so actively in
the intervals of time between his work in the farm, his animals and trees.
António and Baltazar are
long-time friends. On my walks around the neighborhood, from time to time, I
come across the two of them, both sitting on wooden blocks making slow
conversations. Finding them here, in the middle of the fields, gives me joy.
Both with a decade older than me, I see them as agents of serenity, people with
availability and time for others, builders of small stories with whom you can
spend quality time. I envy them for being at this level, for having already
silenced the intrusive noises of their previous life, for feeling satisfaction
with what they do and for the reach of their simple ideas.
